sábado, 19 de julho de 2008

Foucault e a homossexualidade - Parte 2

Vamos tratar da relação entre a vida de Michel Foucault e seu pensamento, buscando detectar como sua homossexualidade aparece refletiva em sua obra. Em primeiro lugar, no entanto, é preciso destacar que não é possível estabelecer uma relação causal simplista, do tipo "como ele foi homossexual, se interessou por sexo". A vida e o pensamento de Foucault são muito mais complexos para serem reduzidos a uma equação dessa simplicidade. Alguns biógrafos e comentaristas seguem esse procedimento, mas o resultado é fraco.

É este o caso de David Halperin, autor que ficou conhecido por pesquisar a homossexualidade na Grécia antiga. No livro Saint Foucault (Oxford University Press), Halperin, que é militante homosexual e editor do Gay and Lesbian Quartely, afirma que toda a obra de Foucault é decorrência de sua luta contra a perseguição homossexual. "Os homossexuais devem lutar contra a vontade imemorial de lançar o descrédito sobre eles, e combater para manter o controle da representação daquilo que são", afirma.
"Quando ouço alguém dizer que Michel Foucault era homossexual mas não era apenas isso, considero que estou diante de uma versão liberal da homofobia", conclui. Será possível esse reducionismo? Será que toda a produção artística ou intelectual de um gay é determinada por sua orientação sexual? Vejamos.
Sadomasoquismo

O público em geral tem muita curiosidade de saber sobre o sadomasoquismo de Foucault. Ele, de fato, freqüentava – e não escondia isso – os clubes SM de São Francisco. Segundo Didier Eribon, biógrafo de Foucault e autor de Michel Foucault e seus contemporâneos (Jorge Zahar Editor), esse hábito fez com que alguns comentaristas arriscassem fazer relações entre o SM e a obra de Foucault. É o caso, por exemplo, de James Miller, autor de The passion of Michel Foucault (Harvard University Press), que explica o percurso intelectual de Foucault a partir de suas "experiências-limite" com o SM. Para ele, até mesmo a morte de Foucault, vítima da aids em 1984, foi "deliberadamente escolhida" em decorrência de desejos masoquistas.
Da mesma forma, a investigação de Foucault acerca das técnicas de tortura nas prisões, presente nas páginas de Vigiar e punir (Editora Vozes), é um traço SM. Miller vai mais além e diz que o slogan "Sejamos cruéis", pichado nos muros da Sorbonne em maio de 68 era resultado da influência de Vigiar e punir sobre algum estudante contestador. "Essa conclusão é no mínimo singular", afirma Eribon, "já que Foucault publicou Vigiar e punir em 1975, é pouco provável que o estudante em questão tivesse podido lê-lo em maio de 1968".

Ora, os estudos sobre a tortura e a prisão não encontram eco naquilo que Foucault escreveu sobre o SM. Muito pelo contrário, Foucault sabia separar a crueldade do sadismo e do masoquismo. "A idéia de que o SM está ligado a uma violência profunda, de que a prática SM é um meio de liberar essa violência e essa agressividade, é uma idéia estúpida", disse o próprio Foucault em entrevista à revista gay The Advocate. "Sabemos bem que essas práticas não são agressivas. Elas consistem em inventar novas possibilidades de prazer, graças à erotização das partes estranhas do corpo".
Ou seja, Foucault soube detectar o caráter teatral da cena SM. "Sabe-se muito bem que se trata sempre de um jogo. Há uma concordância, explícita ou tácita, pela qual os atores reconhecem certos limites que não devem ser ultrapassados". Dessa forma, o SM não constituiu para Foucault em uma "experiência-limite", como quer Miller. Ao contrário, aproxima-se mais de uma diversão despretensiosa do que uma ideologia.
Contra a repressão

Segundo Eribon, "o que Foucault teve que superar não foi sua homossexualidade – como poderia ele ter uma idéia tão absurda? – foi a repressão que o impedia de viver sua homossexualidade".
Claro que não é possível desvincular qualquer obra do contexto que a produz. Nesse sentido, a homossexualidade de Foucault certamente influenciou a escolha de alguns de seus objetos de pesquisa. No caso, é possível pensar que toda sua investigação sobre as formas explícitas e implícitas de dominação decorriam, de certa forma da repressão que sentiu. Em entrevista à revista francesa Revue Nouvelle, Foucault diz: "Sempre quis que cada um de meus livros fosse, em certo sentido, fragmentos de autobiografia. Meus livros sempre foram meus problemas pessoais com a loucura, a prisão, a sexualidade".
No entanto, o libelo contra a repressão, a favor da liberdade, tem alcance maior do que ser reflexo da biografia do autor. Remetem a um compromisso com a verdade.
Amizade e homossexualidade

A homossexualidade para Foucault carrega um potencial transformador baseado na amizade. É essa a parte mais sensível e poética de suas considerações sobre os homossexuais. Em outra entrevista, para a revista gay francesa Gai Pied, Foucault diz que o fato de terem de inventar suas formas de se relacionar, os gays desenvolvem novos arranjos, baseados sobretudo na amizade. "Entre um homem e uma mulher mais jovem, a instituição facilita as diferenças de idade, as aceita e as faz funcionar. Dois homens de idades notavelmente diferentes, que código têm para se comunicar? Estão um em frente ao outro sem armas, sem palavras convencionais, sem nada que os tranqüilize sobre o sentido do movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer", afirma.

Todo o debate contemporâneo sobre relacionamentos abertos ou novas famílias refletem essa amizade proposta por Foucault. É essa amizade exposta por Foucault ao responder aos jornalistas da Gai Pied. "É uma das concessões que se fazem aos outros de apenas apresentar a homossexualidade sob a forma de um prazer imediato, de dois jovens que se encontram na rua, se seduzam por um olhar, que põem a mão na bunda um do outro, e se lançando ao ar por um quarto de hora. Esta é uma imagem comum da homossexualidade que perde toda a sua virtualidade inquietante por duas razões: ela responde a um cânone tranqüilizador da beleza e anula o que pode vir a inquietar no afeto, carinho, amizade, fidelidade, coleguismo, companheirismo, aos quais uma sociedade um pouco destrutiva não pode ceder espaço sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas de força imprevistas. Penso que é isto o que torna perturbadora a homossexualidade: o modo de vida homossexual muito mais que o ato sexual mesmo. Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, e aí está o problema. A instituição é sacudida, intensidades afetivas a atravessam, ao mesmo tempo, a dominam e perturbam. Olhe o exército: ali o amor entre homens é, incessantemente convocado e honrado. Os códigos institucionais não podem validar estas relações das intensidades múltiplas, das cores variáveis, dos movimentos imperceptíveis, das formas que se modificam. Estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito".


Fonte : G magazine

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