sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O corpo gay

Poucas vezes nos damos conta de que todo o debate sobre diversidade sexual gira em torno do corpo. Afinal, tanto a idéia de "orientação sexual" quanto a de "identidade de gênero" tratam da relação que estabelecemos com nosso corpo ou com o corpo do outro. Assim, as questões de identidade, preconceito e direitos sexuais são questões do corpo.
Mas, se todos nós "temos" um, por que se criam tantos conflitos sobre o uso que cada pessoa faz do seu? O corpo tem sua história e pesquisá-la ajuda a compreender muitos dilemas e impasses contemporâneos.


O "corpo" é sempre o mesmo?

O corpo já foi alvo de proibições das religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo, islamismo), instrumento para purificação em certas tradições orientais, objeto de reflexões de filósofos e outros pensadores desde a Antigüidade. Nas artes, a pintura egípcia estabelecia o "princípio da frontalidade", pelo qual as partes mais importantes do corpo seriam aquelas que deveriam aparecer em destaque. Por isso as figuras egípcias, para nossos olhos modernos e ocidentais, têm uma aparência estranha, com o tronco retratado de frente e a cabeça de perfil.

Porém, em nenhum outro momento ou cultura da história o corpo ganhou tanta centralidade como nos últimos dois séculos. Do surgimento da ciência moderna, que analisou até o nível microscópico a anatomia e a fisiologia humanas, ao desenvolvimento de tendências artísticas de vanguarda, o corpo foi submetido a olhares, questionamentos, escrutínios diversos. Tornou-se objeto de investigação, debate, novas leis.

No século XX foi modificada até mesmo o estatuto do corpo na vida cotidiana. Na moda, Coco Channel libertou a mulher dos espartilhos e iniciou uma exibição progressiva das pernas que irá culminar na criação da mini-saia por Mary Quant. No cinema, a imagem do corpo na tela grande fez com que ele fosse notado em detalhes.
Nas revistas femininas, o corpo foi domesticado de maneira diferente a cada década. Para as mulheres, com o surgimento da revista Cosmopolitan em 1968 nos Estados Unidos, foi divulgado como fonte de prazer. Sua versão brasileira, a revista Nova, trazia em seu primeiro número, em 1973, dicas para se conseguir um orgasmo múltiplo! Pense bem: se antes, nas revistas femininas, as mulheres eram assexuadas (o modelo era a dona de casa classe média), agora a mulher não só fazia sexo, mas tinha orgasmo. E múltiplos!
Também foi no século XX que Eugen Sandow criou o "fisiculturismo", técnica de hipertrofia muscular que iria se espalhar como ideal de beleza masculina nas academias de ginástica e parodiada, décadas mais tarde, nas artes plásticas por Richard Hamilton, no quadro Just what is it that makes today's home so different, so appealing?, de 1956, no qual um corpo musculoso, provavelmente desenvolvido em academias, ocupa o centro da tela, ao lado de outros objetos que denotam a prosperidade norte-americana, como eletrodomésticos e comida enlatada.
A entrada do corpo no espaço público está associada também, segundo o socióloog inglês Anthony Giddens, à expressão de uma "sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução". Para o historiador francês Jean-Jacques Courtine, "ao longo dos primeiros vinte anos deste século [o texto é de 1995] as exibições das anatomias mais ou menos reveladas vão se tornar mais freqüentes. A exposição pública dos corpos adquire pouco a pouco uma respeitabilidade que até então lhe havia sido recusada. Sensibilidades transformadas no corpo, para seu espetáculo e seus usos, aparecem com a ascensão de novas classes médias. Estas já não se reconhecem nos valores morais de uma burguesia tradicional, cuja influência está em declínio. Elas aspiram menos à ordem do que ao sucesso. Fazem do enriquecimento material, e também do acesso rápido à satisfação dos desejos individuais, os critérios do êxito".
Nas artes cênicas também há câmbios profundos em relação ao corpo nas últimas décadas. Rudolf Laban sistematizou o que ele chama de "linguagem do movimento" e criou o teatro-dança ( Companhia Quasar?? Cirqui d'soleil ?). A eutonia de Gerda Alexander surgiu como técnica terapêutica de recuperação de movimentos, mas passou a ser utilizada por bailarinos e atores como instrumento de criação. Isadora Duncan e Loie Fuller, bailarinas que não tinham formação clássica, inventaram novas formas de dançar, abrindo caminho para outros inovadores como Michel Fokine, Nijinski, Mercê Cunningham e Maurice Béjart, todos eles desenvolvendo novas estratégias comunicativas para o corpo em cena.
Essas mudanças, aliadas ao advento de novas tecnologias e a expansão dos meios de comunicação de massa, por sua vez, influenciaram a codificação do corpo – movimento intensificado com a globalização, que exige códigos não-verbais para a internacionalização das mensagens. Configura-se, dessa forma, a era da imagem, com os corpos tendo de enquadrar, de alguma forma, em esquemas pré-concebidos.
Segundo Michel Foucault, o discurso sobre a sexualidade revela que não há liberdade, até mesmo porque há uma ciência dos corpos a ditar os padrões. O discurso médico, por sua vez, impõe um escrutínio do corpo e o discurso psiquiátrico aprisiona os que se enquadram na categoria da não-razão. Mais ainda, os corpos são também sujeitos a olhares. Na modernidade, há um processo de racionalização crescente, alicerçado no discurso da ciência; um processo de vigilância, onde os corpos são obrigados a se conduzirem em função do que é estabelecido como normal sob pena de exclusão para os desviantes.

A fabricação do corpo gay

Essa revolução "corporal" deve muito aos movimentos de emancipação homossexual. Ou, por outro lado, mas igualmente válido, é possível falar de uma ação concomitante que levou, de um lado, a um novo estatuto do corpo na modernidade e, de outro, à reivindicação de direitos sexuais pelos LGBT.
Para a historiadora francesa Anne-Marie Sohn, na virada do século XIX para o XX, o corpo homossexual tornou-se objeto médico. "É pelo final do século XIX que nasce na Alemanha e na Inglaterra, nos meios médicos e psiquiátricos, a primeira ciência sexual, com a publicação, em 1886, da Psychopathia sexualis de Richard Von Kraft-Ebing, os Estudos de psicologia sexual de Havelock Ellis e os trabalhos de Magnus Hirschfeld (que escreveu Os homossexuais de Berlim – O terceiro sexo). Fundamentadas em estudos de caso, ela tenta uma tipologia 'científica' dos comportamentos e das perversões, que já não toma como base o pecado, mas critérios de normalidade e de anormalidade. O sodomita, fustigado pela Bíblia, transforma-se desse modo em um "doente" ( ??? ).
Por isso, o "tratamento" da homossexulidade na primeira metade do século XX visava sua "cura" e, para tanto, desenvolveu-se uma série de protocolos médicos que tratavam de intervenções no corpo. Inicia-se uma era de gestão do corpo sexuado que inclui o tratamento hormonal e até intervenções cirúrgicas. A transexualidade, então tida como uma forma de homossexualidade, era um distúrbio extremo que desafiava a psiquiatria, a endocrinologia e a genética. Em 1921, o médico Félix Abrahan realiza a primeira operação de transgenitalização, transformando o paciente "Rodolfo" em "Dora" por meio de uma penectomia seguida da construção de uma pseudovagina.
Em meados do século, o relatório Kinsey já havia mostrado que a homossexualidade nada tinha de anormal. Segundo Sohn, "Ele (Kinsey) propõe uma visão radicalmente nova da homossexualidade, uma experiência corriqueira, segundo ele, porém mais ou menos intensa e classificada por uma escala que vai de 0 a 6. Sublinha assim que 37% dos homens tiveram pelo menos uma vez uma experiência homossexual; 4% não tendo tido senão relações sexuais só com uma pessoa do mesmo sexo. A maioria das pessoas navega, deste modo, entre heterossexualidade e homossexualidade, o que proíbe qualquer explicação pela patologia ou pelo desvio".
O fim da homossexualidade como doença, como é conhecido, só ocorre na década de 80. A transexualidade, por sua vez, ainda é uma "disforia de gênero", status que tem seus defensores até mesmo no movimento LGBT.


Os anos gloriosos
Da liberação dos anos 60 até o surgimento da aids, viveu-se um período de relativa liberdade sexual. Ainda que se possa identificar novas formas de dominação exercida sobre os corpos obrigados a serem libidinosos, é inegável que, pela primeira vez, o sexo era um tabu menor. Segundo Sohn, "nesse ínterim, o mundo viveu, entre a pílula e a aids, o direito ao prazer associado à liberdade. Esses trinta anos gloriosos da sexualidade, entretanto, são o fruto de um longo processo de liberação, esboçado desde o fim do século XIX, mas reivindicado somente nos anos 1960".
Trata-se, portanto, de uma era na qual foram estabelecidas novas formas de se lidar com o corpo, agora dissociado da reprodução. Ainda seguindo as reflexões de Sohn: "O século XX permitiu que a sexualidade não ficasse mais confinada no campo estritamente controlado do casamento. Essa mutação permaneceu na clandestinidade durante muito tempo. Por isso, na seqüência de 1968, alguns militantes homossexuais, simpatizantes da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (na França), proclamam: 'Gozemos sem barreiras!', essa reivindicação parece uma ruptura, ao passo que consagra somente um estado de fato".
É assim que o filósofo gay Guy francês pode declarar, nos anos 1970, que "o buraco do meu cu é revolucionário", afirmação esta que coloca em xeque os padrões de masculinidade e, por meio do corpo, questiona séculos de dominação masculina e machismo heterocentrista. Afirma, ainda, que as reivindicações de "sexualidade para todos" convertia-se, sem volta, em reconhecimento de "todas as sexualidades". Inicia-se uma era de identidade gay calcada em códigos corporais que sequer a aids foi capaz de ofuscar.


Corporalidades gays contemporâneas

A visibilidade obtida pelos homossexuais nas últimas três décadas gerou novas formas de codificação do corpo e, infelizmente, de estigmatização e preconceito entre os próprios gays. Assim, o corpo malhado das barbies esconde muitas vezes o machismo interiorizado que desqualifica uma suposta fragilidade feminina. E também gera o desprezo por aqueles que não se adéquam a esse padrão.
Por outro lado, a investida ursina contra esses padrões pode revelar-se igualmente centrada na supervalorização da virilidade, ainda que contrária ao "macho de academia". Em ambos os casos, há uma evidente corpolatria, calcada na codificação de atributos corporais. A eles são atribuídos signficados e valores que interferem nas formas que o desejo se manifesta.
Essa codificação, porém, não é atributo somente das barbies e dos ursos. Está presente em muitas formas de manifestação da sexualidade, que precisa dos signos certos para poder se expressar. O psicanalista Jacques Lacan chamou de "significante da transferência" aos traços que fazem com que a pulsão sexual siga seu rumo. Pode ser a barriga de tanquinho ou o pêlo no peito, mas também a voz aguda do afeminados, a ausência de pêlos e marcas de expressão nos que preferem os mais jovens, os cabelos brancos de quem gosta de coroas. Ou até mesmo o porte de certos objetos de fetiche: a farda, a roupa de couro do SM ou a calcinha do cross-dresser.
Existe, porém, uma estética gay dominante, veiculada nas revistas e sites especializados. Voltando às reflexões de Sohn, "o corpo masculino sofre cada vez mais a influência das imagens sugeridas pelos gays. O homossexual viril, esportivo e musculoso, importado da Califórnia nos anos 1990, contaminou a moda e a publicidade. (...) Os gays também liberaram a componente feminina da masculinidade e a componente masculina da feminilidade, desestabilizando ao mesmo tempo as divisões clássicas de gêneros".
É um novo tempo, de mudanças ainda em transformação. Se prevalece a repressão ou se é uma onda libertária, talvez seja cedo para dizer. Mas na centralidade do corpo moderno, os gays já deixaram suas marcas.
Por Ferdinando Martins

Minha Observação: Viris, esportivos e musculosos? que herança boa que veio da Califórnia hein?? Não vejo mal nenhum em querer manter um corpo legal, até mesmo por que isso significa saúde, e mesmo que a pessoa esteja buscando se enquadrar num padrão, ela está inconscientemente buscando o bem para o corpo! É uma pena, que muitas vezes esse "bem ao corpo" não faça bem à alma, pois é muito triste ser precionado a algo, só para se enquadrar num grupo ou ser aceito ! Então, concordo que cada um deve ser feliz da sua forma, mas sem incriminar aqueles que adoram o belo e o saudável, até por que o belo o é aos olhos de quem vê ! E viva as diferenças !!

E deixo vocês com dois Sets tudo de bom, do meu amigo, Dj Leah, residente da Boate Disel Gyn !
abraço

INFINITA - Dj Leanh Special SET: http://www.zshare.net/audio/168888285ee495ae/


POP SET - AGOSTO 2008: http://www.zshare.net/audio/16932461fe411028/

2 comentários:

Râzi disse...

Eu estou simplesmente impressionado com esse post... de queixo caído!!!

Vc foi fundo, meu querido!!!

Olha, nem vou dar qualquer opinião... acho que não tem o que se falar!!

Beijão!

FOXX disse...

concordo com o razi
texto impressionante, mto bem fundamentado, eu não tenho nada a acrescenta-lo, perfeito!

e concordo tb com sua observação pessoal, e falo por experiencia própria: eu sou um dos que se rende a pressão!