Confesse: quantas vezes você já atribuiu suas responsabilidades aos outros para se livrar da culpa e da angústia que elas trazem? Descubra por que assumir de vez seus atos e escolhas pode ser libertador!
Peguei a bicicleta naquela tarde para dar uma volta na área de lazer do prédio, já que ainda não tinha permissão para explorar as ruas que circundavam nosso condomínio. Assim que desci, vi perto da quadra os garotos mais velhos com suas bikes exibindo as habilidades que eles, com mais idade que eu, já tinham: empinavam, davam cavalinhos de pau, guiavam sem as mãos. Vendo meu olhar de curiosidade e fascínio, me chamaram para integrar o grupo. Não sei se porque era normal para eles ou se era mesmo para me desafiar, eles se puseram a fazer umas manobras bem difíceis, como pedalar entre os carros estacionados. Para não ficar para trás, fui eu passar nas vagas com minha magrela quando me desequilibrei e caí em cima de um Monza bege que estava à direita. O guidão fez um risco profundo na lataria do capô. Levantei rápido, quis disfarçar. Mas é claro que eles viram. “Ferrou”, gritou um deles, que se pôs a pedalar. O resto também fugiu. Tratei de pegar rápido a bicicleta, sair de fininho e voltar logo para casa.
Mal tinha entrado no meu quarto, a campainha tocou. Ouvi uma voz nervosa e alta de um homem na sala. Dois xingamentos me bastaram para cair na real: era o dono do carro! Meu coração acelerou, gelei o corpo inteiro e sentei do lado da cama, calado e imóvel para não levantar suspeitas de que eu estava lá. Ele esbravejou, xingou, mas minha mãe me defendeu. Ela mal conseguiu, é verdade, mas quando ouvi ela tomando meu partido, dizendo que éramos crianças e que ele não tinha provas de que tinha sido eu mesmo, senti uma calma profunda, uma sensação de que meu quarto tinha ficado maior de repente e nada podia me alcançar. Minha mãe não sabia que tinha sido eu, mas ao enfrentar o homem possuído de raiva tinha tirado de mim uma responsabilidade que eu não conseguiria assumir. Imagina se eu mesmo tivesse que ir à sala, olhar para cima e falar para o dono do veículo: “Fui eu mesmo, por quê? Vai encarar?” Nem que eu tivesse superpoderes!
Lembro-me dessa história toda vez que sou pego pelas responsabilidades da vida adulta – e tenho pensado nisso cada vez mais, já que estou sendo irremediavelmente atraído para a faixa etária dos 30 anos. Ficar adulto é isso, afinal: sermos responsáveis pelas decisões que tomamos, pelas escolhas que fazemos e pelos atos que praticamos. É quase como largar o casulo, deixar de lado a ingenuidade infantil e a inconsequência juvenil para tomarmos, de uma vez por todas, as rédeas da nossa vida.
Claro que seria mais fácil ter alguém para ir lá na sala assumir por nós as responsabilidades que deveriam ser nossas. Mas não dá para passar a vida toda transferindo nossas responsabilidades aos outros. Assumir nossos atos, medos e tropeços pode nos transformar em pessoas melhores. Se você estiver mesmo disposto a admitir os seus, é hora de virar a página e descobrir por quê.
As relações afetivas são as mais propensas a atribuição de culpas; o fracasso é sempre do outro, costumamos pensar!
Infância perpétua
Em seu texto no qual descrevia o preceito do Iluminismo, o filósofo alemão Immanuel Kant dizia que o movimento baseado na razão e no conhecimento era a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável. Menoridade, nesse sentido, estava relacionada à incapacidade do homem de se servir do seu entendimento sem a direção de outra pessoa. Kant defendia que o homem, na maioria das vezes, está em estado de infância, mas que esse estado não é absoluto, nem uma imposição. Muitas vezes as pessoas se colocam nesse estado porque não são capazes ou não querem dirigir a si mesmas – preferindo que outros definam sua direção. “Se eu tenho um livro que me faz as vezes de entendimento e se tenho um médico que decide por mim sobre meu regime, não preciso me preocupar”, escreveu o filósofo, para explicar esse comportamento transferidor de responsabilidade a que nós nos submetemos vez por outra.
Porque é mesmo comum atribuirmos uma ou outra culpa a outras pessoas ou até a situações. “Cheguei atrasado porque o trânsito estava caótico”; “Terminamos o casamento porque ele era muito egoísta”; “Não consigo trabalho porque o mercado está muito concorrido”; “Sou assim porque meus pais me educaram desse jeito.” E assim vamos vivendo, isentando-nos aqui e ali das nossas responsabilidades de sair mais cedo de casa, de batalhar para uma relação mais equilibrada, de fazer aperfeiçoamentos para melhorar a carreira, de escolher outros caminhos além daqueles que nos foram designados. Transferir nossas responsabilidades é um comportamento normal e aceitável, que todo mundo invariavelmente comete. Trata-se de uma tendência de autopreservação, um mecanismo de defesa a que nossa mente recorre quando a carga fica pesada demais. É quando projetamos a culpa no outro, isentando-nos e incriminando alguém. “Na medida em que projetamos sobre uma ou mais pessoas nossos impulsos inconscientes desejados ou indesejados, diminuímos nossa ansiedade, nossa angústia”, explica a psicóloga Vera Chvatal, do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp.
Troca de acusações
Frank e April Wheeler formam um casal jovem que se muda para um subúrbio em Connecticut em busca de uma vida cheia de possibilidades. Com dois filhos antes do planejado, April se dedica à vida doméstica, enquanto amarga uma malsucedida carreira de atriz amadora. Para sustentar a família, Frank trabalha em um emprego burocrático, o qual não suporta. Mas eles passam os dias na casa da rua da Revolução à espera de uma mudança, tolerando os vizinhos desinteressantes e a rotina ordinária de um subúrbio. A chance de mudança vem quando April sugere a Frank que se mudem para Paris, cidade na qual ele já esteve e vislumbra voltar para encontrar sua felicidade, sua aptidão artística e a razão de viver. Eles fazem planos, dividem a notícia com o único casal de amigos e contam os dias para a partida. Mas uma proposta de trabalho e uma gravidez não planejada (indesejada?) mudam os planos dos Wheeler. Pior que a impossibilidade da viagem, os acontecimentos trazem a constatação de que eles se tornaram tão pueris como seus vizinhos, com a mesma vida medíocre que eles difamavam.
A partir desse enredo, o escritor americano Richard Yates conta a história das frustrações que alicerçam o casamento de seus personagens no livro Foi Apenas um Sonho (levado também para o cinema). A impossibilidade de mudar de vida se transforma em um fogo cruzado de acusações entre Frank e April, um transferindo ao outro a culpa de sua infelicidade. A certa altura do romance, o casal, já em crise, recebe os vizinhos e seu filho recém saído de um manicômio para o jantar. Ao contarem sobre as mudanças de planos, ele se vira para Frank e, com inabalável lucidez, diz: “Não me surpreenderia se você a engravidasse de propósito, só para poder passar o resto da vida se escondendo atrás desse vestido de gestante”. Frank reage agressivo, mas não pode discordar.
O campo afetivo costuma ser, aliás, o terreno mais propenso a atribuição de culpas. Quando uma relação acaba, quase sempre tendemos a culpar o parceiro por seu fracasso – e pelas condições que levaram a ele. Em um de seus textos semanais na Folha de S.Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris foi categórico: “Uma das boas razões para se casar é que, uma vez casados, podemos culpar o casal por boa parte de nossas covardias e impotências”. Para ele, a decepção consigo mesmo se torna muito menos amarga quando é transformada em acusação. “Você está me impedindo de alcançar o que eu não tenho coragem de querer”, escreveu. Isso porque um coloca na mão do outro as rédeas da própria vida, com medo de assumir o controle e fracassar. Mas ninguém (salvo exceções) se casa obrigado. Por isso, também respondemos por aquilo que conscientemente escolhemos. E, afinal, somos livres para fazer nossas escolhas – pelo menos teoricamente.
Liberdade responsável
O filósofo Renato Janine Ribeiro, aliás, questiona a relação liberdade e responsabilidade tal qual a conhecemos. Ele defende que a responsabilidade é que pressupõe a liberdade, não o contrário; temos que pressupor que somos responsáveis, para então ser livres. “Só quando sou capaz de responder pelos meus atos é que eu tenho a liberdade para fazer minhas escolhas”, afirma. Até porque nossa liberdade já é constituída de forma orientada: não escolhemos se nascemos homem ou mulher, negro ou branco, pobre ou rico. Diante da nossa realidade e da responsabilidade que ela nos impõe é que somos livres para fazer outras escolhas, tomar novas decisões.
O primeiro passo para nos tornarmos livres para definir os rumos da nossa própria vida é assumir quem somos. “Se eu negar o que eu sou, minha liberdade fica muito mais difícil. Afinal, você só consegue fazer escolhas a partir daquilo que você já é. E só é possível mudar quando assumirmos nossa condição.”
Mas esse conceito traz ainda muita confusão sobre nossa responsabilidade no mundo. “Vivemos numa sociedade na qual vigora uma tendência de ‘desresponsabilizar’ as pessoas, como ocorre na relação entre crime e miséria, por exemplo. Não se pode, nesse caso, eliminar as responsabilidades das pessoas por questões exclusivamente sociais”, diz Janine Ribeiro. Nascer na favela não justifica que alguém se torne criminoso. “Só não somos responsáveis, ao menos no plano pessoal e íntimo da culpa, por aqueles atos para os quais não se havia alternativa ou por aqueles que resultam do acaso”, afirma o filósofo. Tanto que o homem moderno se define por responder somente por aquilo que sua individualidade designou como sendo ação sua. Isso ajudou a engrossar o caldo dessa “desresponsabilização”. “Prova disso é a insistência com que algumas práticas terapêuticas recomendam a seus pacientes que só respondam por aquilo que é deles, que se individuem, recusando sofrer pelo que lhes é insidiosamente imposto; essa tentativa de definir práticas, mais até, sentimentos e personalidade em torno da responsabilidade pessoal comprova a que ponto o ser feliz tornou-se, hoje, dependente dessa construção que parece constituir o grande esforço dos tempos modernos.”
A culpa dos pais
A verdade é que muitos de nós fazemos o possível para não assumir nossas próprias culpas. Assim, despendemos energia e tempo demais procurando costas alheias para assentá-las. “A questão é que o alívio de transferir responsabilidades para os outros é ilusório”, explica a escritora e filósofa americana Marietta McCarty, autora do livro How Philosophy Can Save Your Life (“Como a filosofia pode salvar sua vida”, sem edição no Brasil). Porque basta olhar de perto com a lente da consciência os fracassos da nossa vida para enxergar ali mais das nossas marcas do que somos capazes de admitir. “Transferir nossas responsabilidades para os outros só ajuda a nos tornarmos mais impotentes perante elas, porque nos sentimos ainda mais incapazes de agir sobre nossa própria vida”, escreve ela. “Se a culpa é do outro, ela não me pertence, então não tenho nada a fazer a respeito”, pensamos. Dessa forma, acabamos nos isentando não apenas da culpa, mas da capacidade de lidar com ela.
Essa isenção sobre nossos atos começa a se formar durante a infância. Quando nascemos, nossa família começa a nos passar a noção de responsabilidade a partir de valores pessoais, sociais, culturais e aprendemos a responder a uma autoridade superior que primeiramente serão os nossos pais. Com esses valores introjetados, assumimos a responsabilidade por nossas ações e crescemos como pessoas responsáveis, capazes de desenvolver a autonomia. “Se esses valores não nos foram inculcados, por carência deles seja em nossa família, seja em nossa sociedade, passaremos a atribuir a culpa e a responsabilidade de nossos atos aos outros”, afirma a psicóloga Vera Chvatal. Então, o clichê de que “a culpa é dos pais” tem certo sentido, como prova a sabedoria dos lugares-comuns. Mas se na infância uma criança ainda não está apta a responder por todos os seus atos, ao longo da vida é certo que vamos ganhando liberdade para nos exprimirmos e fazermos aquilo que queremos através da conquista da autonomia que nos dá o poder. É preciso, como defendia Kant, sair desse estado de infância e passar a assumir responsabilidades para termos uma vida mais plena. Porque o preço da inocência é mesmo a impotência. Fechar- se no quarto pode eximi-lo das consequências do seus atos. Mas ao mesmo tempo lhe tira o prazer de sair para brincar.
Texto : Rafael Tonon
(Revista SIMPLES)
Galera, achei esse texto incrível ! Espero que gostem! E aí vamos sair para brincar????